Friday, June 8, 2007

Um dia, por Pedro Cem

Ao Caro Anónimo com quem tive a sorte de debater o Santo Cura de Ars


Fazia hoje anos. A partir de agora, ou talvez de antes, faço anos como toda a gente que tem a sorte de os continuar a fazer. De longe a longe, com os passos rápidos, da sombra.
Há muito que passei a comemorar a hora, porque os dias dão pouco tempo para comemorações quando já aprendemos que o dia de aniversário é um dia para Servir os outros, e, só no fim, esse Eu que é ainda um Outro.
Naquela hora em que nasci, 2 da tarde, na Ribeira do Porto com o Sol pando e as peixeiras a gritarem, encontrei-me hoje no canto de um refeitório, sózinho. Ao lado, um moço africano, com o rosto suave de pupilo de missionários, pousava a cabeça olhando a parede, com aquela gratidão de todos os que neste mundo têm algo para comer. Estava só também, no seu trajo divertidamente branco de auxiliar de cozinha, sempre no extremo da mesa onde os outros trabalhadores o costumam enquadrar, entre o paternalismo e a galhofa. Lembrei-me dos tempos que passei em colégios ou escolas pouco ricas, ao partilhar a sua expressão de quem afagava a própria mente, vidrada nos olhos, esse caleidoscópio maravilhoso que Deus nos deu a todos e que contemplamos assim com o nariz um pouco pendente, quando o corpo está calado, como se nos ocorresse qualquer memória indefinida e olhássemos para dentro. É o suave leão da vida que nos ronrona debaixo da árvore do meio-dia.

Tive sorte. Consegui ver uma Mulher muito bonita com quem me cruzo às vezes e que me poupou a culpa de devolver o olhar. Também vi as floritas da Primavera no relvado que pareciam todas agitar-se para mim, como se viajasse de combóio, sentado no refeitório.

Senti ums desolada vontade de quem precisa desesperadamente que alguém lhe pegue na mão. E, de repente, uma dessas môscas da fruta começou-me a rondar. Lembrei-me do fundador destas Duas Cidades, Santo Agostinho e do que ele dizia sobre a utilidade das môscas: despertar-nos. Este "môsco" ínfimo tocou-me várias vezes, com suavidade, como se não fosse ele, mas ambos nos encontrássemos em vôo. As ínfimas criaturas de um dia têm também esta utilidade: chamar-nos suavemente a atenção para que existem. De tal modo que, quando me levantei, as minhas mãos deslizavam pelo manto das recordações da vida, como se pela orla do manto vermelho de uma Nossa Senhora e descobri que algo existe efectivamente, de nós para fora, ronronando desde antes das nossa vidas. O toque deste veludo, por uma vez que seja, vale bem a nossa passagem.

Um momento de procissão é a Vida em que levamos o altar da Senhora, de quem flui sem fim, o manto de veludo, entre os nossos dêdos. E todos vamos atrás, levando o véu, um pouco por graça, um pouco por galhofa.

Compreendi então o pobre Nietzsche,em Turim, agarrando-se aos soluços, ao pescoço do cavalo que um carroceiro espancava. Com a sua triste figura, numa rotura de lágrimas e sangue, ele não queria dizer que era esse próprio cavalo, chamando a atenção sobre si, nem queria testemunhar uma boa-nova de amor universal a todas as criaturas. Ele, o da sorte danada, agarrava-se exausto a esse veludo que nos pulsa ao contacto da pele como quem se agarrava à vida antes dela lhe começar a deslizar pelos dedos.

Será o EU todos os fenómenos? Não sei. Nem suspeito. O Eu e todos os fenómenos são como esse véu duma Nossa Senhora da Parvónia onde as nossas mãos passam, brevemente. E, sem saber porquê, todos pegamos no véu e o levamos na procissão, de mão em mão, deslizando entre os dedos.

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